O Papiro de Turim e o enigma dos “Shemsu-Hor”

Assim como ocorreu na antiga Mesopotâmia, o Egito Antigo preservou registros de governantes que não eram considerados plenamente humanos nem propriamente deuses. Segundo esses relatos, tais figuras teriam reinado por períodos extremamente longos, anteriores às dinastias históricas conhecidas. Essa tradição está registrada em um documento singular conhecido como Papiro de Turim, também chamado de Cânone de Turim, um texto que desafia interpretações simplificadas da história egípcia.
CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADEA história de determinadas civilizações antigas nem sempre se ajusta perfeitamente à narrativa predominante apresentada pela arqueologia tradicional. Existem documentos e listas antigas que, embora reconhecidos como autênticos, costumam receber pouca atenção por não se enquadrarem nos modelos históricos mais aceitos. Um exemplo clássico é a Lista Real Suméria, que descreve reis com reinados de milhares de anos, frequentemente interpretados como figuras semi-divinas ou simbólicas.
De maneira semelhante, o Egito Antigo também preservou a ideia de uma linhagem de governantes anteriores aos faraós humanos, associados a um passado remoto e excepcionalmente longo.
O Papiro de Turim: um documento singular
O Papiro de Turim é um texto legítimo da egiptologia que apresenta uma extensa lista de governantes do Egito Antigo, desde entidades divinas — como o deus Rá — até faraós históricos que governaram até a XIX Dinastia. O documento encontra-se atualmente no Museu Egípcio de Turim, na Itália, de onde deriva seu nome.
CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADEDe modo geral, o texto é datado do reinado de Ramessés II, embora exista a possibilidade de ter sido copiado em um período posterior. Ele foi escrito em escrita hierática e mede aproximadamente 170 centímetros de comprimento por 41 centímetros de altura. Atualmente, o papiro encontra-se fragmentado em cerca de 160 partes, muitas delas bastante pequenas, com lacunas significativas causadas pela perda de material ao longo do tempo.

Curiosamente, o papiro era originalmente um registro administrativo de impostos. No verso do documento, foi posteriormente escrita a lista dos governantes egípcios, incluindo deuses, entidades míticas e reis humanos.
O papiro foi descoberto em 1820, em Luxor (a antiga Tebas), pelo viajante italiano Bernardino Drovetti, sendo adquirido em 1824 pelo Museu Egípcio de Turim, onde recebeu a designação Papiro nº 1874. Quando a caixa que transportava o documento foi aberta, o papiro já se encontrava quebrado em inúmeros fragmentos.
CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADEO egiptólogo Jean-François Champollion, responsável pela decifração dos hieróglifos, examinou o documento e conseguiu identificar apenas alguns fragmentos maiores com nomes reais, produzindo um esboço preliminar do conteúdo. Desde então, diversos estudiosos tentaram reconstruir o texto para facilitar sua análise e interpretação acadêmica.

Deuses, intermediários e faraós humanos
O Cânone de Turim inicia-se com uma era considerada divina, anterior aos faraós humanos. Nessa seção inicial, aparecem deuses que, segundo a tradição, governaram o Egito em um passado remoto. O primeiro deles é Rá, seguido por outras divindades importantes do panteão egípcio, como Shu, Geb, Osíris, Seth e Hórus, conforme reconstruções baseadas nos fragmentos sobreviventes e em paralelos com outras tradições egípcias.
Após esse período, surge uma fase ainda mais enigmática, associada aos chamados Shemsu-Hor, expressão que pode ser traduzida como “Seguidores de Hórus”. Essas figuras são descritas como governantes que antecederam as dinastias humanas e que ocupam uma posição intermediária entre os deuses e os homens.
CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADEO Papiro de Turim encontra-se organizado em onze colunas, nas quais os governantes do Egito Antigo são listados de forma cronológica, desde o período mitológico até as dinastias históricas. A divisão das colunas ocorre da seguinte maneira:
- Coluna 1 — Deuses do Egito Antigo, considerados governantes do período primordial.
- Coluna 2 — Deuses do Egito Antigo, espíritos e reis míticos, incluindo a referência aos Shemsu-Hor (“Seguidores de Hórus”), associados a uma fase intermediária anterior às dinastias humanas.
- Coluna 3 — Linhas 11 a 25, abrangendo os reis das Dinastias I e II.
- Coluna 4 — Linhas 1 a 25, correspondentes aos governantes das Dinastias II a V.
- Coluna 5 — Linhas 1 a 26, incluindo as Dinastias VI a VIII, com possíveis extensões às Dinastias IX e X, dependendo da reconstrução adotada.
- Coluna 6 — Linhas 12 a 25, referentes às Dinastias XI e XII.
- Coluna 7 — Linhas 1 a 2, contendo parte das Dinastias XII e XIII.
- Coluna 8 — Linhas 1 a 23, dedicadas à Dinastia XIII.
- Coluna 9 — Linhas 1 a 27, abrangendo as Dinastias XIII e XIV.
- Coluna 10 — Linhas 1 a 30, referentes à Dinastia XIV.
- Coluna 11 — Linhas 1 a 30, incluindo governantes das Dinastias XIV a XVII, já no período intermediário tardio.

É especificamente na segunda coluna que aparece a referência aos Shemsu-Hor, associados a um período anterior ao início da história dinástica tradicional.
Quem foram os Shemsu-Hor?
Os Shemsu-Hor são apresentados como figuras de transição entre o domínio divino e o governo humano. As referências a eles são vagas e limitadas. Não existem representações conhecidas em relevos ou hieróglifos que descrevam sua aparência ou ações. Toda a informação disponível provém, essencialmente, das breves menções presentes no Papiro de Turim.
CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADEPara a maior parte dos egiptólogos, os Shemsu-Hor pertencem ao campo da mitologia e não correspondem a personagens históricos no sentido estrito. Outros pesquisadores, no entanto, sugerem que essas figuras podem refletir memórias simbólicas de um período muito antigo, talvez associado à formação inicial da civilização egípcia.

Uma passagem reconstruída do papiro menciona durações de reinado extraordinárias atribuídas a esses governantes, totalizando dezenas de milhares de anos — valores que, evidentemente, não são interpretados literalmente pela historiografia moderna, mas que levantam questões sobre seu significado simbólico ou cosmológico.
Paralelos com a tradição suméria
Referências a governantes com reinados extremamente longos também aparecem em outras culturas antigas. A Lista Real Suméria, por exemplo, descreve reis que teriam governado por dezenas de milhares de anos antes de um grande evento de ruptura, geralmente identificado como o Dilúvio.
CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADEAssim como ocorre com os Shemsu-Hor, esses reis sumérios são frequentemente interpretados como figuras semi-divinas ou simbólicas, representando uma visão de mundo na qual o poder político e o divino estavam profundamente entrelaçados.
A semelhança entre os relatos egípcios e sumérios sugere que ambas as civilizações preservaram tradições sobre um passado extremamente remoto, possivelmente idealizado ou mitificado, no qual os primeiros governantes não eram vistos como simples humanos.
Uma questão antiga na egiptologia
O arqueólogo francês Gaston Maspero (1846–1916), uma das figuras mais influentes da egiptologia, levantou uma questão fundamental: qual é a verdadeira origem da civilização egípcia e de suas crenças religiosas?
CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADESegundo Maspero, os fundamentos da religião e da organização social do Egito já estavam estabelecidos muito antes da Primeira Dinastia. Para ele, compreender esses textos antigos exige considerar a mentalidade de povos que viveram milhares de anos antes do período dinástico conhecido.
Embora essas ideias não sejam unanimemente aceitas, elas demonstram que o debate sobre as origens profundas do Egito Antigo não é recente e continua aberto a interpretações.
Entre mito, simbolismo e história
O Papiro de Turim permanece como uma das fontes mais importantes — e também mais complexas — para o estudo da cronologia egípcia. Suas referências a deuses, intermediários e governantes humanos refletem uma concepção de tempo e poder muito diferente da moderna.
CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADEMais do que registros históricos literais, essas listas parecem preservar memórias simbólicas, mitológicas e religiosas de um passado distante, fundamentais para a identidade cultural do Egito Antigo. Ao compará-las com tradições semelhantes da Mesopotâmia, os pesquisadores continuam explorando como as primeiras civilizações concebiam sua própria origem e o papel do divino na história humana.
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